terça-feira, 21 de junho de 2016

Literatura infantil e crítica política


Por que tanto me incomodam alguns livros infantis que se pressupõem críticos, que pretendem dar às crianças uma educação política, se a rigor eu concordo com sua posição? O que há neles, na sua forma, no seu enredo, na maneira de insinuar – normalmente nada sutil – suas ideias que deita por terra sua unidade e sua coerência?

Devo falar aqui de um livro cujo título e autores não me lembro e que tampouco vale a pena mencionar (mais um dos maus livros que vêm da biblioteca). É a história de uma vaca que decide voar e por isso passa a ser perseguida pelo ditador da cidade, um urubu, que proíbe de voar os animais que não têm asas. Começa com aquele velho clichê do personagem que tem um sonho absurdo e por isso é motivo de chacota. Então o sonho se realiza sem maiores explicações, deixando desconcertados todos os que faziam a crítica.

Ora, vacas não voam. Ah, dirão, mas é literatura infantil, e vacas podem voar na literatura infantil. Isso é evidente; vacas podem voar em qualquer literatura, o que já foi feito antes. Mas fazer a vaca voar para mostrar que todos os sonhos são possíveis, isso só mesmo na (sub)literatura infantil.

Passando desse início bastante mal construído, o livro melhora ao descrever os mecanismos de reação do povo e do ditador diante da vaca voadora. As pessoas fingem não ver, dizem que a vaca está louca. O ditador faz leis complicadas, manda prender, e por fim, sem conseguir capturar o animal, apela para a mídia, enchendo os jornais com notícias sobre os perigos de voar. Em meio à narração, porém, o autor sente a necessidade de orientar a leitura o tempo todo, inserindo comentários entre parênteses, explicitando uma interpretação que deveria ser feita pelo leitor.   

Terminada a leitura com minhas filhas, fiquei me perguntando: qual o problema deste livro? Qual a mentira que está aqui dentro? Por que ser absolutamente avessa a qualquer sorte de autoritarismo não foi suficiente para que eu me identificasse com ele?

A resposta encontrei na simplificação do personagem do urubu: o ditador é um grande estraga-prazeres. Só isso. Um malvado, mal humorado, infeliz e egocêntrico que não quer que os outros sejam felizes. Não há qualquer referência à injustiça, à miséria, ao tecido social da cidade. Não há qualquer referência ao capital, às corporações que estão por trás do ditador e que têm interesses – sobretudo econômicos – na sua manutenção no poder. Pois é assim que funciona uma ditadura, seja ela explicitada pela figura absoluta de uma autoridade violenta, seja pelo poder brando do capitalismo liberal.

Se essa realidade é complicada demais para ser explicada às crianças, Ângela-Lago, Bartolomeu Campos de Queirós, Maurice Sendak, Jutta Bauer lograram, com crueza ou delicadeza, trazer facetas dela para as crianças. Sem mentiras.

É importante não confundir fantasia com mentira e realismo com aquilo que acontece no dia-a-dia. O realismo trata da verdade, não importa se com elementos fantásticos ou não. Uma narrativa cotidiana, por sua vez, pode trazer grandes engodos ideológicos. E centralizar a maldade em um único personagem, redimindo todos aqueles que trabalharam para ele e foram beneficiados por isso, é um grande engodo ideológico.

Personificar o mal em um único indivíduo é uma ferramenta que tem sido historicamente utilizada para golpes políticos, mais ou menos declarados: o bode expiatório (curiosamente, o nome de um dos personagens do livro em questão) apazigua as multidões – que então podem voar, ou achar que estão voando livremente. É assim que um livro anti-ditadura, escrito por um autor defensor da democracia, pode paradoxalmente contribuir para a formação de um leitorado ideologicamente mais vulnerável.

Outra confusão muito frequente na literatura infantil é o nivelamento das relações de autoridade, com a negação da obediência e da submissão aos pais sob a justificativa de serem um paralelo da opressão social. O questionamento – necessário – das estruturas sociais e familiares tradicionais não pode desembocar em uma outra forma de dogmatismo, a primazia absoluta dos desejos individuais, e uma perda de referências a respeito de em quem a criança pode confiar.

O personagem ícone do mal não é novo, e o maniqueísmo simplista é o que predomina na produção da indústria cultural. Mas na literatura crítica não pode ser assim.  

Mas, enfim, há ainda quem creia que os bons são maioria.