segunda-feira, 4 de abril de 2016

Os maus livros



Minha filhas frequentam a biblioteca e gostam de escolher os livros que levarão para casa. Também ganham livros, e gostam deles. São os livros que eu não seleciono e que, a partir de um julgamento do mérito estético que minha formação me qualifica minimamente a fazer, são ruins. O que fazer nestes casos? Como agir como formador e educador, sem descambar para censor?

Quando se trata de comprar livros, interfiro mais. Interfiro porque livros são caros e trabalhamos muito para fechar as contas. Explico que precisamos prestigiar os escritores que gastaram tempo inventando uma história original, contada de um jeito bonito, em vez de investir nosso dinheiro nas mesmas histórias que já lemos infinitas vezes, com pouca diferença entre elas. Ou os ilustradores, artistas que passaram meses para criar imagens lindas, em vez de operadores anônimos de softwares de criação visual que apenas substituem a cor dos cabelos e vestidos dos personagens da Disney para se passarem por novas ilustrações. Na maior parte das vezes, simplesmente compro os livros pela internet sem lhes pedir a opinião, e elas se deliciam depois explorando a caixa surpresa que chegou pelo correio.

É natural que a criança busque aquilo que lhe é familiar, e aí entra nosso papel de educadores estéticos. Elas têm uma facilidade enorme para reconhecer o traço marcante de alguns ilustradores, como Eva Furnari, Janaína Tokitaka ou Mariana Massarani. Quando já são alfabetizadas, reconhecem também o nome dos autores – se lembrarmos sempre de mencioná-los nas leituras compartilhadas. Se já tiveram contato com um livro de certo autor ou ilustrador, e se gostaram dele, certamente serão atraídos por outras obras dos mesmos autores ou ilustradores na estante de uma biblioteca, em uma sala de leitura ou livraria. 

Se não apresentamos às crianças obras de qualidade literária – ou seja: textos de mérito estético e ilustrações de mérito artístico –, é possível que elas as rejeitem por uma simples questão de estranhamento. Se elas têm contato com a indústria cultural, por outro lado – o que é quase inevitável nos dias de hoje, especialmente se a criança frequenta a escola –, identificarão rapidamente os personagens conhecidos e buscarão livros que são apenas reproduções estáticas de desenhos animados.

Confesso que me aborrece um pouco o discurso da mínima intervenção na formação da criança, de modo que ela tenha a liberdade de se tornar o que quiser. Como se houvesse uma programação anterior à própria existência da criança e superior a qualquer coisa que os adultos lhe possam ensinar. Esse discurso, que se pretende libertário, ignora a impossibilidade de isolar qualquer "bom selvagem" das influências da sociedade. A criança constrói repertórios de conhecimentos, valores, sentimentos, a partir de sua interação com o mundo, e a partir desse repertório é que ela passa a julgar o mundo. Elas irão à escola, terão amigos, mentores, estarão expostas à publicidade e à cultura de massas, e por todos eles serão influenciadas – podendo, claro, devolver essa influência. E é justamente para que desenvolvam esse senso crítico que precisamos educá-las. Em outras palavras: se alguém vai doutrinar minhas filhas, prefiro que seja eu.

Tendo cumprido nossa função de formadores do gosto, podemos deixar as crianças livres para escolher. E, de fato, elas poderão achar muito chatos alguns livros de alta literatura que coloquei dentro de casa. Mas, sosseguemos, as obras rejeitadas não serão a maioria. Elas gostarão também de livrinhos de princesa que ganharam de aniversário, e não os jogarei no lixo. Então seu repertório será formado de bons e maus livros, com bastante literatura intermediária entre eles. 

Haverá um movimento entre livros que são mero entretenimento, lições de moral ou transmissão de conhecimentos banais e aqueles outros que vão efetivamente auxiliar o leitor a se situar no caos do mundo. Livros que vão estimular o que têm de mais humano, nas palavras de Antonio Candido: "o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor." Essa capacidade humanizadora, porém, também está presente nas obras de menor qualidade, e não precisamos temê-las se tivermos garantido o acesso da criança, com a mediação adequada, também às grandes obras literárias – que, embora haja quem negue, abundam também na literatura infantil.

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