quarta-feira, 23 de março de 2016

Por que ler?



É difícil refletir sobre obviedades. Ler é importante. Devemos ensinar as crianças a ler, e nelas incutir hábitos de leitura. Mas, por quê?

É necessário perguntar por que, uma vez que aquilo que declaramos nem sempre corresponde àquilo que praticamos. É necessário perguntar por que, pois se não praticamos é porque, no fundo, não temos tanta certeza daquilo. E se há a dúvida, reflitamos.

Reli recentemente um texto do sociólogo Antonio Candido intitulado O direito à literatura. Nele o autor relaciona a organização formal das palavras em um texto literário à nossa capacitação para nos situarmos no mundo. As palavras, como tijolos em uma construção, nos levam a ordenar primeiro o nosso espírito, depois o mundo em volta. Essa literariedade não está presente apenas nas formas eruditas, mas também naquelas mais simples, como as parlendas, as canções de ninar, as quadrinhas, as histórias de animais.

Ora, a criança, recém chegada ao mundo, está em constante processo de organização interna e de elaboração da realidade externa. Por isso perguntam, o tempo todo, por quê? Por isso querem entender tudo, nos mínimos detalhes, pois o repertório de informações de que dispõem ainda é limitado diante da complexidade da vida – e sempre mais complexa, com o processo civilizatório e industrial que gerou uma especialização profissional cada vez mais abstrata. É bem mais simples para uma criança entender um pai que capina a roça que um pai funcionário público.

A mensagem codificada na forma literária, com sua estrutura própria, tem seu efeito ampliado. Pode ser por meio do ritmo, das rimas, dos sons, de aliterações, assonâncias ou outros recursos estilísticos. Essa intuição ancestral se manifesta por meio das músicas tão usadas pelas professoras em creches e pré-escolas como forma de conduzir atividades, acalmar e concentrar as crianças. Segundo Candido, a mensagem veiculada pelas palavras organizadas nos toca porque obedece a certa ordem.

Privar um indivíduo da literatura é privá-lo da ordem. Não a ordem em seu pior sentido, como negação da criatividade, mas justamente a ordem que possibilita essa criatividade. Ordenar o que vemos e o que ouvimos é uma prática ligada à própria noção de sociedade, como testemunham as pinturas rupestres e as histórias transmitidas oralmente de geração a geração em sociedades ágrafas.

Pela palavra ordenada o mundo foi criado a partir do caos. Pela palavra ordenada, conseguimos transitar no mundo sem enlouquecer. Candido diz que toda obra literária pressupõe a superação do caos e faz uma proposta de sentido. Os sentimentos da literatura nos são familiares – medo, paixão, angústia, etc. –, mas muitas vezes não chegamos a formulá-los, e permanecem vagos em nossa mente.

Para a criança, a palavra ordenada lhe dará as ferramentas para que se localize no desconhecido, e elabore o enorme montante de novas informações que recebe a cada momento. Se a literatura pode ter efeitos imprevistos, talvez perigosos – daí ter sido historicamente o maior alvo da censura – é um risco que precisamos correr. A literatura é uma necessidade universal.   

"A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante."
Antonio Candido

terça-feira, 1 de março de 2016

Entre reis, ratos, morangos e pulgas - Don e Audrey Wood




"Papai, esse livro é de adulto?", foi a pergunta que Aninha, nossa caçula de dois anos e meio, fez ao pai quando ele abriu O rei Bigodeira e a sua banheira (King Bidgood's in the bathtub. Ática, 2010, trad. Gisela Padovan), com texto de Audrey e ilustrações de Don, o casal Wood.


A pergunta se deveu às ilustrações bastante realistas, não só em relação aos traços e cores, mas também à composição. A folha de rosto traz a imagem panorâmica de um castelo onde o leitor atento pode brincar de descobrir as personagens do livro: o rei, em meio ao vapor da água quente; os cortesãos subindo a escada em direção à sua sala de banho; e, figura importantíssima, o coitado do pajem.


As primeiras páginas do livro mostram o pajem subindo as escadas com a água escaldante para o rei – que se recusa a sair do banho. Cavaleiro, rainha, duque chamam o rei para guerrear, almoçar, pescar, e o rei convida um a um a fazer tudo isso na banheira. Ao prazer estético que provoca a exuberância das ilustrações soma-se a diversão de encontrar nelas mil detalhes. Na cena do almoço, o banquete real servido sobre as águas traz um bolo em forma de castelo, com miniaturas dos cortesãos e do próprio rei em sua banheira. Docinhos em forma de ovelhas, com um pastorzinho acompanhando, e bolos com pombas esculpidas fazem as delícias das crianças. Na cena da pescaria, o desafio é encontrar os muitos animaizinhos escondidos entre a vegetação, na água, no chapéu do duque: sapos, rãs, caramujos, minhocas, patos, uma garça e um martim pescador.


Outro deleite a parte é observar as expressões faciais dos cortesãos, do pajem e do próprio rei. O talento de Don Wood para o desenho e a pintura de rostos é marca não apenas deste livro, mas de outros como A casa sonolenta (The Napping House. Ática, 2009, trad. Gisela Padovan). São muitos os detalhes a serem observados, que conferem à obra um tom de crítica bem humorada. Todos os que tentam tirar o rei da banheira acabam completamente encharcados, e o pobre pajem, que aparece em todas as cenas como um símbolo da falta de noção do rei, está sempre carregando água quente, ou a parafernália requisitada pelo rei para suas aventuras na banheira, ou ainda está limpando o chão ensopado.


O texto é simples, repetitivo, com um bordão a partir do qual se fazem as variações (o horário do dia e a proposta ao rei). E o rei sempre chama o proponente com uma onomatopeia referente à atividade que farão na banheira: bum para a guerra, hum para o almoço, tchu para o baile de máscaras...

Se, para as crianças, o livro é garantia de uma deliciosa leitura cheia de interrupções ("olha o sapo!", "olha a minhoca!"), para os adultos, numa segunda camada de leitura, O rei bigodeira apresenta uma crítica às hierarquias sociais, à manutenção do luxo das autoridades à custa do abuso dos serviçais – no caso, uma criança.


Talvez a obra mais conhecida do casal Wood no Brasil seja O ratinho, o morango vermelho maduro, e o grande urso esfomeado (The Little Mouse, The Red Ripe Strawberry, and The Big Hungry Bear. Brinquebook, 2012, 2ª ed. Trad. Gilda de Aquino), que foi distribuído há alguns anos pelo programa Coleção Itaú de Livros Infantis e está em praticamente todas as escolas e em muitos lares. Embora não tão genial quanto O rei bigodeira, esse livro traz uma inovadora interação ente o ratinho e o leitor – a partir de cuja perspectiva o texto é narrado.


A Brinquebook publicou ainda Rápido como um gafanhoto (Quick as a Cricket, trad. Gilda de Aquino), que infelizmente para nós vale a pena somente pelas lindas ilustrações. A poesia do texto, cheio de rimas e aliterações (slow as a snail/ big as a whale), perdeu-se completamente na tradução.


Finalmente, cabe lembrar do já mencionado A casa sonolenta, poema cumulativo que dá o tom de uma história que se passa numa casa onde todos estavam dormindo. E para quem gosta de ilustrações instigantes, nesta obra a graça fica por conta de tentar encontrar a pulga em cada cena. 

Don e Audrey Wood têm outros livros publicados no Brasil que ainda não tive o prazer de ler: A bruxa Salomé (Heckedy Peg. 1994, trad. Gisela Padovan); Clara manhã de quinta à noite: uma história sem pé nem cabeça (Bright and Early Thursday Evening. 1996, trad. Luciano Vieira); A flauta da lua (Moonflute. 1993, trad. Dinah de Abreu Azevedo); e A palavra feia de Alberto (Elbert's bad word. 1994, trad. Gisela Padovan), todos pela Ática. 


Eis um pouco de Don e Audrey Wood – com o perdão do clichê –, para todas as idades.

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Atualização:

Descrobri hoje, na quarta capa de A casa sonolenta, que a Ática publicou ainda outros dois livros de Audrey Wood: Meus porquinhos (Piggies.1999, trad. Gisela Padovan) e A história do pequeno pinguim (Little Penguin's Tale. 1996. Não descobri quem traduziu, mas provavelmente foi a mesma Gisela Padovan), este último ilustrado pela própria autora. Embora não tão brilhantes quanto as ilustrações do marido, as de Audrey trazem a mesma vitalidade e alegria, num conto que se insinua anti-moralista mas dá uma bela virada no final (aliás, nos finais). Para conferir, só mesmo recorrendo a sebos e bibliotecas, porque as obras - que fazem parte da Coleção Abracadabra - estão esgotadas no mercado.